segunda-feira, 14 de março de 2011

Borges, Bono e a Ironia

Quando você estiver em Buenos Aires, vá até o bairro Palermo (para ser mais preciso, vá até Palermo Viejo) e procure uma rua que já se chamou Serrano, mas que hoje tem outro nome. Caminhe na direção do Jardim Zoológico e, na Rua Paraguai, vire à direita. Continue virando sempre à direita nas ruas Gurruchaga e Guatemala, avance uma quadra por esta última e vire novamente à direita. Assim, você voltará ao ponto de partida, ou seja, à antiga Rua Serrano, que atualmente se chama Rua Jorge Luis Borges, em homenagem ao grande escritor argentino, que passou a infância vivendo numa casa dessa rua... Quem acompanha o U2 há bastante tempo, como eu, certamente já se admirou com o fato de que as músicas, muitas vezes, demoram um bocado para chegar ao público. Os próprios integrantes do U2, além de produtores e outras pessoas ligadas à banda, costumam mencionar títulos e comentários acerca de possíveis faixas a serem lançadas no futuro. Esses rumores são arquivados em sites e blogs e, a partir desse material, os fãs fazem uma série de especulações sobre o (sempre tão aguardado) álbum que está por vir. Há músicas que surgiram nas sessões de How To Dismantle An Atomic Bomb, de 2004, que ainda não foram lançadas, como por exemplo a belíssima North Star, que já está sendo tocada ao vivo. Outra música “engavetada” há alguns anos é If I Could Live My Life Again, cuja letra, segundo Bono, foi inspirada num poema de Borges... 

Palermo Viejo é uma área cheia de cafés e restaurantes. Depois de completar a volta ao quarteirão (que os argentinos chamam de “vuelta manzana”) procure um lugar agradável para tomar um bom vinho, a bebida favorita de Borges, à qual ele dedicou um soneto que termina com as seguintes frases: “Vinho, ensina-me a arte de ver a minha própria história / como se esta já fosse cinza na memória”. 

A história do U2 é marcada por reviravoltas e momentos de reinvenção. As inquietações pessoais de Bono chegaram a uma espécie de auge no álbum Pop, de 1997. A partir daí as letras foram perdendo o egocentrismo (como o de I Still Haven’t Found, por exemplo) e ganhando um caráter mais amplo. O título dessa nova canção, porém, sugere uma reflexão pessoal. If I Could Live My Life Again (se eu pudesse viver novamente a minha vida) é uma das músicas cogitadas para o novo disco, que, de acordo com os rumores, será lançado em maio, um pouco depois da passagem do U2 na América dos Sul. Pessoalmente, estou bastante ansioso para ouvi-la. Aliás, se o Bono pudesse viver novamente a sua vida, o que ele faria de diferente?

A pergunta é muito borgeana, sem dúvida. A imagem do homem analisando a sua própria história aparece com frequencia na obra do escritor, como no Soneto ao Vinho, mencionado acima, e em textos como O Outro e Borges e Eu. No entanto, tudo indica que a nova música do U2 tenha sido baseada num poema apócrifo, ou seja, um texto atribuído erradamente a um autor e disseminado dessa forma.

Há alguns anos, começou a circular um poema chamado Instantes, que começa com as frases: “Si pudiera vivir nuevamente mi vida / En la próxima trataría de cometer más errores” (Se eu pudesse viver novamente a minha vida / na próxima tentaria cometer mais erros). Esse poema foi traduzido a vários idiomas, sempre com a assinatura de Borges... Mas agora vamos à ironia.

Uma rápida pesquisa no google argentino nos conduz a inúmeros sites e blogs contendo o poema Instantes, supostamente de Jorge Luis Borges, mas também nos leva a alguns sites onde o erro é denunciado, não apenas por especialistas em Borges, mas também por Maria Kodama, a segunda mulher de Borges, que também já foi a sua secretária e agora, além de herdeira, é considerada a guardiã do acervo do escritor.

Bono é conhecido pela sofisticada ironia de suas letras e de suas performances, sobretudo as da época da Zoo TV, quando ele se vestia de diabo e ligava para a Casa Branca... Os temas preferidos de Borges eram os mal-entendidos, os equívocos, os erros e as erratas. É o que podemos apreciar, por exemplo, no conto Pierre Menard, Autor do Quixote, do seu célebre livro Ficções

Quando você estiver em Buenos Aires, procure aquele quarteirão que eu mencionei, pois esse é o quarteirão da fundação mítica, que Borges imortalizou no livro Cadernos San Martín. O próprio Borges, em sua juventude, ao percorrer essas ruas, resolveu capturar tal momento em um poema, do mesmo jeito que Bono costuma capturar momentos de sua vida para colocá-los em músicas como The Ocean, Stay (Faraway So Close) e Moment of Surrender. Borges e Bono têm muito em comum.

A entrevista em que Bono afirma que If I Could Live My Life Again foi baseada em um poema de Borges é de 2005. Imagino que, a esta altura, o equívoco já tenha vindo à tona. Além disso, não se sabe se a música entrará no novo álbum (que alguns ainda acreditam que se chamará Songs of Ascent). Há músicas do U2 que são simplesmente descartadas, sem jamais chegarem ao público, ou abandonadas e resgatadas depois de muitos anos, como Disappearing Act. Outras, mudam de título (Vertigo já se chamou Native Son, Fez-Being Born já se chamou Tripoli...). Mas seria interessante que essa pérola, If I Could Live My Life Again, finalmente saísse, porque, se o poema que inspirou Bono a escrevê-la não é da autoria de Borges, a situação é extremamente borgeana. E se Bono quiser (e puder) viver novamente a sua vida, cometendo mais erros, nenhum erro será mais irônico do que esse. 

2 comentários:

  1. Muito interessante...

    Fiz uma pesquisa no

    http://www.atu2.com/newalbum/

    e realmente encontrei essa informação...

    Valeu!

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  2. Olá Pablo, fiz o itinerário Jorge Luis Borges em Buenos Aires, fui até a casa onde ele passou a infância, depois na Biblioteca onde ele trabalhou e até no Zoo só para ver se encontrava o tigre de Bengala que ele tanto amava olhar. Encontrei uma primeira edição do El Aleph, a revista SUR (59) e uma revista com um conto de Borges, tudo isso em sebos e, então... comprei... é claro. Sempre que vou a Buenos Aires fico encantada com a cultura local. Beijos, felicidades e a paz!

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